à gestão pública.
Segundo os arautos desta campanha, a gestão pública seria sempre ruinosa, conduzia a graves desperdícios, e traduzia-se por baixos níveis de eficiência.
Além disso, o Estado era sempre um mau gestor, não demonstrando capacidade para rentabilizar os recursos existentes, conduzindo a uma permanente insatisfação dos cidadãos.
Quanto à gestão privada, a sua própria natureza seria, desde logo, uma garantia de êxito e possibilitaria obter resultados muito superiores a nível do funcionamento dos serviços de saúde e da própria satisfação dos utentes.
De acordo com a experiência existente em diversos países e com múltiplos estudos efectuados, mesmo no plano específico da saúde, não se verifica qualquer evidência acerca desta apregoada superioridade.
Uma das operações teóricas e políticas mais bem sucedidas do neoliberalismo foi instaurar os debates em torno da oposição estatal / privado.
A deslocação do debate para este eixo traduz-se numa situação de favorecimento das teses neoliberais, em que o estatal é caracterizado como ineficiente, aquele que cobra impostos e desenvolve maus serviços à população, como burocrático, como corrupto, como opressor, enquanto que o privado é promovido como espaço de liberdade individual, de criação, de imaginação, de dinamismo.
Como refere o Prof. Emir Sader, a oposição estatal / privado reduz o debate a dois termos que, na realidade, não são necessariamente contraditórios, porque o estatal não é um pólo, mas um campo de disputa que, nos nossos tempos, é hegemonizado pelos interesses privados.
Quanto ao privado, ele não constitui a esfera dos indivíduos, mas representa os interesses mercantis, como se verifica nos processos de privatização, que não se traduziram em processos de desestatização em favor dos indivíduos e beneficiaram as grandes corporações privadas, as que dominam o mercado.
Dentro do próprio Estado desenvolve-se, de forma surda ou aberta, o conflito e a luta entre os que defendem os interesses públicos e os interesses mercantis, entre o que Pierre Bourdieu chamou de braços esquerdo e direito do Estado.
Nesse sentido, a polarização essencial não se verifica entre o estatal e o privado, mas entre o público e o mercantil ( Emir Sader; Público Versus mercantile).
Em meados da década de 1980, o Banco Mundial (BM) publicou um documento intitulado “O financiamento dos serviços de saúde dos países em desenvolvimento: Uma agenda para a reforma”. (Frenk, J.. El financiamento como instrumento de política pública. Bol. Of. Sanit. Panam., 103(6), 1987.)
Este documento colocava, entre outras, as seguintes concepções orientadoras:
-Os serviços curativos só produzem benefícios privados, ou seja, benefícios ao consumidor directo do serviço e não à sociedade no seu conjunto.
-Existência de um sector dominante de serviços curativos localizados no sector privado, e de um sector governamental paralelo de prevenção e tratamento básico para os pobres.
-Defesa de um modelo fragmentado de prestação de cuidados.
-Cobrança de taxas aos utentes dos serviços de saúde.
-Desenvolvimento de seguros de saúde.
-Emprego eficiente dos recursos não governamentais, (numa clara perspectiva de rápido desenvolvimento da iniciativa privada).
-Apologia extrema da suposta superioridade total dos serviços privados. -Descentralização dos serviços governamentais de saúde, acompanhada da forte diminuição do volume de serviços da responsabilidade do Estado.
A doutrina ideológica neoliberal deriva deste tipo de documentos oriundos de entidades multinacionais como o BM, representando a sua designação, por si só, uma tentativa de denegrir o liberalismo e o seu significado de progresso social e político.
Enquanto nos séculos XVIII e XIX o liberalismo foi a expressão do próprio desenvolvimento do capitalismo empenhado em liquidar as excessivas tutelas e os entraves feudais, o neoliberalismo traduz-se, agora, numa acção oposta ao desenvolvimento e progresso das sociedades.
A palavra neoliberalismo passou a ser uma forma elegante de chamar aos mais conservadores o que antes era designado por retrógrado ou reaccionário e uma etiqueta com que se encobre a moderna economia de mercado.
Analisando os factos no seu respectivo contexto histórico, importa ter em conta que no século XIX o liberalismo significou a consolidação dos conceitos de liberdade e democracia, encarnando os esforços de progresso, de avanço científico e de desenvolvimento das nações.
O liberalismo opôs-se ao dirigismo do Estado, enfrentou o despotismo, foi ideário da tolerância e da fraternidade humana.
Os graves resultados económicos e sociais a que tem conduzido a “economia de casino” do neoliberalismo só poderá prosseguir com regimes políticos cada vez mais autoritários e repressivos.
São estes resultados que têm determinado, em grande medida, a emergência da extrema-direita em diversos países europeus e latino-americanos.
Defender a gestão por privados nos serviços públicos é o mesmo que querer misturar azeite e água.
A gestão pública e a gestão privada têm finalidades diferentes.
A gestão pública tem como foco fundamental o bem comum da sociedade e a sua evolução civilizacional, a gestão privada está vocacionada para o lucro, o consumo e o negócio.
A gestão pública existe para atingir uma missão que é considerada socialmente valiosa, a gestão privada existe para maximizar o património dos accionistas, tendo com critério de bom desempenho o resultado financeiro.
A gestão pública visa a criação de valor público e a gestão privada visa ganhar dinheiro para os seus acccionistas e proprietários mediante a produção de bens e serviços vendidos com lucro.
As organizações públicas têm um controle político do Estado por meio de eleições. Já nas empresas privadas, o controle é exercido pelo mercado por meio da concorrência entre as companhias e pelos accionistas.
É possível assegurar o bem comum com a gestão privada de serviços públicos?
É possível conciliar bem comum e desenvolvimento social com a maximização dos lucros dos accionista?
Uma das cassetes propagandísticas desses sectores partidários e comerciais foi a de que sendo uma gestão privada saberiam gerir melhor.
Mas o que é escandaloso é estes sectores insistirem no seu fundamentalismo com a «burka» neoliberal, quando há poucos anos atrás assistimos à derrocada de diversas multinacionais e grandes consórcios bancários, reveladores do fracasso da gestã privada.
É igualmente escandaloso que virem os seus apetites para os serviços públicos de saúde quando o nosso SNS está entre os melhores sistemas de saúde a nível mundial e quando é o próprio director - geral da OMS a afirmá-lo de forma eloquente.
Apesar das insuficiências e limitações do nosso SNS, que se tornam mais perceptíveis porque se trata de um serviço público que presta serviços todas as horas de cada dia e todos os dias de cada ano, aquilo que está em causa é sua redinamização e adequação às novas exigências, defendendo-o de quem quer apropriar-se dos dinheiros públicos para aumentar os lucros dos seus accionistas.
Perante a dimensão da ofensiva contra o SNS, importa agregar amplos apoios e vontades que impeçam a destruição da maior conquista política, social e humana da nossa Democracia.
13/10/2018
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*Médico, dirigente sindical
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Saúde: a gestão pública, a gestão privada e a parasitação dos dinheiros públicos